segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

UM POEMA CHAMADO "BEATRIZ"

BEATRIZ

Em algum lugar do mundo
existirá uma mulher chamada Beatriz.

Haverá de ser colhedora de uvas
nas quinta de Portugal.

Em algum lugar do mundo essa Beatriz
estará usando sandálias de camponesa,
será talvez pescadora das tardes e dos rios.

Em algum me esperará
como se não esperasse ninguém,
como se não fosse ela,
a própria Beatriz em alguma igreja distante.

Estará essa Beatriz a colher figos do Outono
como desejos de partir para os oceanos
a ouvir as aves
no pátio de sua espera.

Haverá de estar com uma bolsa de folhas,
o musgo das árvores,
o limo do chão.

Haverá de saber cantar silêncios
essa Beatriz à janela de um castelo.

Em algum lugar de Portugal.


(De neu livro "Poemas Portugueses". Coimbra, 2002)

domingo, 30 de dezembro de 2018

UMA HISTÓRIA DE NATAL

Quando eu era criança, talvez 4 anos, eu ganhei uma bola vermelha de borracha no Natal. Fiquei feliz com minha bola vermelha de borracha. Mas 3 dias depois, a bola de borracha vermelha desapareceu.

No Natal seguinte, eu tornei  a ganhar uma bola vermelha de borracha no Natal. Igualzinha à bola do Natal anterior. Fiquei feliz com minha bola vermelha de borracha. Mas, como no ano anterior, 3 dias depois, minha bola vermelha de borracha desapareceu.

No Natal seguinte, no terceiro Natal, tornei a ganhar uma bola vermelha de borracha. Igualzinha à bola do Natal anterior. Igualzinha em tudo. Como no ano anterior, 3 dias depois minha bola de borracha vermelha desapareceu. Eu nem sabia como explicar à minha mãe.

No Natal seguinte, o quarto Natal, eu ganhei uma bola vermelha de borracha. Igualzinha à bola do Natal anterior. Estava brincando com ela quando um carro passou por cima da minha bola vermelha de borracha, igualzinha à do ano anterior. Levei a bola para minha mãe ver. A bola de borracha vermelha estourou quando o carro passou por cima.

Então, eu nunca mais ganhei uma bola de borracha vermelha no Natal. 

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

OS POETAS MORTOS

POEMA

Os poetas não morreram
como eu pensava:
ainda existem uns três ou quatro
que observo de longe
como se não acreditasse.

Não morreram, como eu pensava.

Uns poucos ainda conhecem as águas das chuvas
a molhar os pés e a roupa nas poças.

Ainda escrevem poemas com as palavras,
deixam-se sentir o que a poesia sente,
como se a tomar um café,
lendo um jornal antigo
que fala de um mundo que não interessa mais.

Ainda existem, uns quatro ou cinco,
ainda existem a andar sapatos perdidos
nos rumos que faltam,
a percorrer lugares que afligem.

Os poetas não morreram
como eu pensava:
ainda existem uns seis ou sete,
que conversam com as abelhas,
com os pássaros feridos,
como se fossem eles essa ave que não voa mais.

Uns oito ou nove, ainda existem

Ainda existem na cicatriz dos dedos,
no poema que se escreve como a última palavra.

Ainda existem, quem sabe quinze, dezesseis.

Ainda existem poetas,
não morreram todos como eu pensava,
alguns raros que se desfazem nos poemas.

Talvez dezenove ou vinte,
que fazem da poesia a sua prece,
poetas que ainda sentem,
a viver silêncios de uma quermesse.:

ainda existem,
uns três ou quatro.



sábado, 1 de setembro de 2018

HOMEM ANTIGO

O homem antigo não compreende o que vê e o que sente. O homem antigo caminha pelas ruas e quase sempre se perde. O homem antigo não compreende as pessoas. Está sempre perdido entre palavras e pensamentos esparramados na sua frente, como se fossem uma grande chuva que não para mais. O homem antigo não entende porque as pessoas são assim. Nem todas. Mas o homem antigo não compreende, porque as pessoas se mostram de um jeito mas por dentro são outras, completamente diferentes. O homem antigo não sabe lidar com muitas pessoas que fingem ser pessoas, mas não são. São seres que se aproximam e somem. São pessoas que fazem valer somente a sua verdade, a verdade do outro não vale. O homem antigo não compreende isso. O homem antigo é um ingênuo que ainda escreve poemas. O homem antigo está sempre machucado por dentro. O homem antigo está sempre calado dentro de si mesmo e quando fala não entende as próprias palavras. O homem antigo quer fugir de si mesmo, quer ir embora, quer esconder-se. As pessoas falam, falam, falam, falam, falam, falam, falam, falam e depois se calam. O homem antigo não vai entender nunca. O homem antigo está fora de lugar.

terça-feira, 31 de julho de 2018

UMA PEQUENA HISTÓRIA DE MÁRIO QUINTANA

Nos 112 anos do poeta e grande tradutor Mário Quintana, lembrei-me de uma história dele, que conheci pessoalmente, aqui em São Paulo e em Porto Alegre. O poeta nunca se casou. Viveu sozinho a vida inteira. E sempre morou em quartos de hotel. Tinha muita dificuldade de viajar para outras capitais do Brasil. Sua vida era Porto Alegre. Mário Quintana era jornalista, trabalhava no Correio do Povo. Morava, então, num quarto do Hotel Majestic, no centro histórico de Porto Alegre. Com problemas financeiros, o jornal fechou. E Mário Quintana, desempregado, não conseguia pagar o hotel. Foi despejado. Sabendo da história, o ex-jogador Paulo Roberto Falcão, da Seleção Brasileira, cedeu ao poeta um quarto no Hotel Royal, de sua propriedade. Ao visitá-lo no novo endereço, um amigo disse: "Quintana, é pequeno demais". O poeta respondeu: "Eu moro dentro de mim mesmo. Não faz mal que o quarto seja pequeno. É bom, assim tenho menos lugares para perder minhas coisas".   

terça-feira, 19 de junho de 2018

O TOCADOR DE FLAUTA




Inicialmente publicado em Portugal, “O Tocador de Flauta” (Editora Temas Originais, Coimbra, 2012) teve uma trajetória marcante na obra poética de Álvaro Alves de Faria, já que, na época, mereceu atenção especial dos apreciadores de poesia portugueses. O livro foi discutido várias vezes em reuniões de poetas e escritores e foi também analisado na Oficina de Poesia da Universidade de Coimbra, dirigida pela ensaísta e professora de Literatura Graça Capinha. Trata-se de um livro que pode ser lido como um poema-romance, com 125 poemas ou 125 pequenos capítulos. Assumindo o papel de pastor, o poeta fala o tempo todo com suas ovelhas, percorrendo as aldeias de Portugal, campos, igrejas, vendo sua gente, costumes, planícies imensas sempre presentes nesse andar pelas pedras e montanhas, seguido por suas ovelhas com quem divide o alimento e abriga-se do frio e das chuvas. “O Tocador de Flauta” é um diálogo com Alberto Caeiro, um dos poetas de Fernando Pessoa que Álvaro mais admira, desde a adolescência. Álvaro Alves de Faria escreveu este livro utilizando a linguagem da poesia portuguesa, à qual se dedicou por 15 anos seguidos, resultando em 18 livros publicados em Portugal, fruto de um mergulho profundo na poesia da terra de seus pais, onde vive toda sua família. “Fui em busca de mim”, costuma dizer o poeta, observando que lá estava sua vida e sua poesia, sua antecedência marcada em poemas com a melodia, o ritmo, as palavras da poesia de Portugal, notadamente a Lírica de Camões e a poesia de Fernando Pessoa, além de outros grandes poetas portugueses de várias épocas. Chamado em Portugal de poeta luso-brasileiro, Álvaro afirma orgulhar-se desse trabalho que realizou e, especialmente, do resultado que conseguiu depois de tanta busca por uma narrativa poética que - como ele observa - não encontra mais no Brasil, onde a poesia, sem generalizar, cedeu à facilidade de um tempo em que é proibido sentir. Equivale dizer, um tempo que se nega à própria poesia.     

(Por favor não comentar)

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018




A cidade rodopia na minha cabeça
E eu rodopio na cabeça a cidade,
Como um duende doente que não acredita que eu existo,
Essa fada da rua da Consolação que me espera descalça,
A Paulista onde danço meus caprichos e dores que não sei mais curar

Eis a cidade que me comove e me faz chorar nos cantos das noites
No colo das mulheres tristes,
Essas que me recebem com um ramo de flores
E rezam comigo nas igrejas fechadas,
Nos cafés amargurados de açúcar,
O abraço perdido no corpo
O grito que escorre pela boca como saliva enlouquecida.

Assim caminho alucinações de São Paulo de bondes antigos
Que ainda vivem na minha memória,
Os cemitérios que me guardam,
As cartas de amor que esqueci na gaveta,
O incêndio que me queima por dentro 
Quando atravesso a Brigadeiro em busca de uma livraria,
Onde estão os livros mortos
Deixando cair poemas pelas estantes,
Palavras suicidas que se perdem nos sapatos antigos que ainda calço.

Nada quero de ti, cidade, nada quero de ti, senão viver o que me cabe.
Viver a possibilidade de viver, essa angústia de todos os dias,
Os entardeceres que guardo no bolso
como se eu fosse um colecionador de noites.

Estou sempre anoitecendo em mim com tuas luzes apagadas,
Tua ciranda e estações do metrô onde me enfio debaixo da terra
Para pensar um pouco e me procurar, já que fugi de mim
E sou um homem sem alma numa cidade que esqueceu e viver,
Cidade de mil faróis como um navio que naufraga na Praça da Sé
E renasce na São Judas, o santo dos desesperados,
Onde rezo pecados que não cometi, todos os pecados que não tenho mais,
Essa estrela que tenho no céu da boca,
Esse guarda-chuva que guardo debaixo do braço, como um velho homem
Que caminha devagar com mãos trêmulas perdidas nos bolsos.   


Faz alguns dias calcei meus sapatos
mas esqueci meus pés debaixo da cama.

Quero dar a São Paulo um bolo repleto de chantili,
Desses que escorrem pelas bocas dos meninos e meninas das ruas,
Quero cheirar contigo os ópios da cracolândia
E quero dormir nos hotéis sem portas onde eu possa me matar
Sem ser visto por ninguém,
Já que nada importa, nada importa, nada importa, nada importa,
Já que nada importa quero ver os luminosos vermelhos
Na cara dos prédios com olhos de raiban
Os moradores de rua que caminham por tuas ruas,São Paulo,
Em busca da vida que se perdeu,
Um prato de comida dividido com o cão,
Tua solidariedade São Paulo, tua perversidade,
Tua crueldade e teu abraço tantas vezes comovente.
Quero andar de patins e mergulhar no lago do Ibirapuera
Para despedir-me de mim para sempre.

A mulher que amo vai deixar-me amanhã
Mas vou deixar a porta aberta
Para que entrem os pássaros na tarde
E que me falem os deuses da noite.

Amo as putas da rua Aurora com dor que já faz parte de mim. 

Na cidade caminho com meu rádio de pilha que não funciona
E olhos as horas no meu relógio de pulso que parou  4 anos.
Ando assim como quem não anda e parou no tempo,
Porque em São Paulo o tempo deixou de existir
E Deus está escondido na Catedral da Sé arrependido do que fez.

Sou monge de mim e vivo num mosteiro que não conheço.
Tenho minha cama e uma janela que às vezes abro ao sol.
Divido com os pássaros as amoras, as romãs, laranjas, as maçãs.
Só não sei rezar, mas Deus aceita meu silêncio.

Guardo um livro no coração e uma estrela que se apagou,
Aquela que caiu no meu quintal como uma planta.

Ando em mim na cidade que me habita
E me envolve dos pés à cabeça,
Como um amor que não se esquece nunca, que faz sofrer,
Sou assaltado nos meus sonhos em todas as esquinas
E a moça que me olha terna procura um amor qualquer para viver.

Tenho o coração enterrado no Pátio do Colégio.

Cidade cicatriz de mim, São Paulo que guardonuma bolsa,
A rua Frei Caneca onde nasci não tem mais casas de janelas azuis,
Não existem mais casas de janelas azuis
E as floriculturas do Largo do Arouche
estão tristes com a falta de namorados.

Os namorados não existem mais nem se abraçam na Praça da República
Nem vão mais ao cine Bijou para comprar margaridas.

Cidade que nasce e morre em mim,
Teu ferimento é meu ferimento,
Esse ferimento que não sara,
A angústias de todos os dias, de todos os instantes,
Os minutos que não passam mais.

Cidade que me habita, guarda o que tenho de triste
E esquece a possível alegria dos dias inesperados.

Quero apenas viver o tempo necessário para te amar sempre muito mais,
Quem sabe eu me encontre em ti, cidade, com minhas palavras trêmulas.

Guardo em mim o que não guardo e tenho em mim o que não tenho,
A poesia que ainda resta nos teus becos,
É lá que estou entre os pedidos,
Até que tudo termine de vez.

                             Álvaro Alves de Faria