quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

A POESIA QUE NÃO CABE MAIS

Numa destas noites longas - e quase todas são longas - ouvi um CD de fados antigos. Já conhecia o fado "Sinal da Cruz", gravado por muitos fadistas homens de Portugal. Numa dessas noites longas, algumas intermináveis. O homem antigo costuma se perder nas noites que não terminam. E nessa noite deu atenção especial ao fado "Sinal da Cruz", com letra do poeta Linhares Barbosa e música de Terrer Trindade. Sentiu que, muitas vezes, a poesia não tem mais lugar. Um fado, uma história de amor, que atravessa os anos e sempre é lembrado em algum lugar. O longo poema musicado que tanta gente cantou, exatamente na terra em que a poesia escorre pelas paredes. Não sei dizer o que pensam os portugueses de um fado assim. Mas sei que sempre alguém ouve, alguém pensa, alguém canta. A singeleza dos versos, a confissão de amor em palavras que quase ninguém mais diz. Só o homem antigo permanece diante de coisas assim. O homem antigo ouviu o fado "Sinal da Cruz" muitas vezes. Depois se fez muitas perguntas que ele mesmo não sabia se responder. O homem antigo nunca sabe se responder. Cabe num tempo assim brutalizado um poema de um fado antigo como este? A poesia é triste. A poesia não sabe. A poesia se cala, mas resistirá sempre. Eu peço que meus 19 leitores leiam a letra de "Sinal da Cruz" e procurem ouvir o fado em algum lugar da Internet.

SINAL DA CRUZ

Na pequena capelinha
da aldeia velha e branquinha,
dei à Maria da Luz
uma cruz de pôr ao peito,
e um juramento foi feito
pelos dois sobre essa cruz.

Juro ser tua,
disse-me ela.
Eu disse:
Juro ser teu.
Pelos vitrais da capela
entrava a bênção do céu.

Passavam-se os meses,
o tempo corria,
e todas às vezes
que eu via Maria
sozinha e menina,
dizia-lhe assim:
Maria da Luz,
tu é para mim
o sinal da cruz
da cruz pequenina.

Mas um dia, há sempre um dia,
que nos rouba a fantasia.
Maria entrou na capela,
esquiva, pé ante pé,
mas meu símbolo de fé
não brilhava ao peito dela.

Quis perguntar-lhe pela jura.
porém, de fé perdida,
vi que não vinha segura,
tinha outra cruz na vida.

Passavam-se os meses,
o tempo corria,
e todas as vezes
que eu via Maria
com más companhias,
dizia-lhe assim:

Maria da Luz,
tu és para mim
o sinal da cruz,
da cruz dos meus dias.

Só mesmo o homem antigo para emocionar-se com um fado assim, cantado sempre por voz masculina, com a dor do fado de Portugal, aquela poesia que vai fundo na vida do homem e nas coisas mais simples, que nem se notam mais. Só mesmo o homem antigo, perdido dentro dele sem saber onde se esconder do mundo.  

2 comentários:

  1. Mas um dia,há sempre um dia,
    Que nos rouba a fantasia.

    Belíssimo poema! Belíssimo!


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  2. Homem Antigo,seus escritos são de uma beleza imensurável.

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